Review: O Mistério de Elena Ferrante…

Review: O Mistério de Elena Ferrante…

Ninguém sabe quem é Elena Ferrante. A informação disponível nos livros que escreve diz-nos apenas que cresceu em Nápoles e que possivelmente viveu por algum tempo fora de Itália. Supõe-se que se formou em Estudos Clássicos, que traduz, ensina e é mãe. As poucas entrevistas que concede são sempre por email e até há bem pouco tempo mais nada se sabia. No entanto, o fenómeno Ferrante atingiu semelhante relevo que várias investigações foram feitas, sem que se chegasse a qualquer conclusão.

Há uns meses (Outubro de 2016) o jornalista italiano Claudio Gatti identificou a autora da tetralogia como sendo Anita Raja, tradutora e mulher do escritor italiano Domenico Starnone, constando ambos na lista de “suspeitos” de serem Elena Ferrante há já alguns anos. Se há provas consistentes? Sim e não. Segundo o artigo publicado por Gatti no New York Times, a sua conclusão é fundamentada “na consulta dos pagamentos que alegadamente foram feitos pela editora de Ferrante”. Anita Raja, por seu turno, é uma mulher de 63 anos, vive em Roma, é tradutora de alemão e trabalha habitualmente com a Edizione E/O, a editora dos livros de Ferrante.

Elena Ferrante escolheu o anonimato desde sempre. Em 1992 escreveu o romance de estreia “Um Estranho Amor” ao qual se seguiram “Os Dias do Abandono” e “A Filha Obscura”. Os três foram lançados num só volume em Portugal com o título “Crónicas do Mal de Amor” (2014). Numa entrevista (por email) que a autora concedeu ao Público esta afirma: “Escrever sabendo que não vou aparecer produz um espaço de absoluta liberdade criativa”. Como leitores, não duvidamos disso.

A polémica começa em 2013 quando o primeiro volume da tetralogia “A Amiga Genial” é traduzido para inglês e, automaticamente, se gera uma febre à volta de Ferrante. Desde essa altura os seus livros foram traduzidos para 40 países e foram vendidos mais de quatro milhões de exemplares. E é aqui que Gatti supõe ter encontrado a verdadeira identidade de Ferrante. Segundo o jornalista que rastreou os pagamentos efetuados pela editora, estes vão ter a Anita Raja e os sinais exteriores de riqueza que a tradutora apresenta não se coadunam com a sua função reconhecidamente “mal paga”.

Os problemas que esta investigação levantou: invasão de privacidade, desrespeito, voyeurismo, o direito dos leitores de conhecerem a identidade de um autor mas, acima de tudo, uma revelação inevitável visto o sucesso arrebatador que Ferrante atingiu. Anita Raja não reagiu à publicação de Gatti e se há quem não duvide da certeza do jornalista, outros há que acham impossível alguém escrever uma história destas sem a ter vivido realmente.

Muito se tem escrito sobre esta tetralogia e as opiniões divergem – entre a literatura e o folhetim o espectro é gigante e Elena Ferrante percorre-o nas mais diversas opiniões. Como leitora assídua vejo nesta tetralogia uma contadora de estórias exímia que entrelaça vidas, pensamentos, ações e sentimentos com um ritmo desconcertante, fluído e claro. A ausência de pensamento metafísico parece-me intencional, deixando ao leitor a liberdade para encontrar o sentido que subjaz à realidade que lhe é apresentada. Gosto de Helena Ferrante e gosto desta tetralogia ácida e cheia de amargura que constrói um mundo perfeitamente plausível onde nos revemos a meio das várias felicidades fugazes que todos usamos para aguentar até ao amanhã.

A quem quer que seja que tenha escrito estes livros eu adorava perguntar se esta história foi totalmente inventada ou se é o resquício de memórias agrupadas. Enquanto os li achei sempre que ninguém conseguiria inventar uma história assim se não a tivesse vivido, e se Anita Raja (ou outra pessoa qualquer) conseguiu criar um mundo tão íntimo e complexo fora da sua experiência pessoal, merece uma ode à sua imaginação.

Giacomo Durzi, realizador italiano, está neste momento a filmar “Ferrante Fever” (https://www.publico.pt/2016/11/16/culturaipsilon/noticia/a-febre-elena-ferrante-agora-em-documentario-1751103), um documentário que procura explicar o sucesso mundial de Elena Ferrante sem, no entanto, bisbilhotar sobre a verdadeira identidade da autora.

Saverio Constanzo, outro realizador italiano, está a fazer a adaptação da tetralogia de Ferrante para o pequeno ecrã numa série de quatro temporadas com oito episódios cada, e terá a chancela da HBO: http://www.vanityfair.com/hollywood/2017/03/ferrante-series-coming-to-hbo

 

A Amiga Genial, sinopse sem spoiler:

 

A narrativa começa e desenvolve-se num bairro de Nápoles e tem como personagens principais duas amigas, Elena Greco (Lenù) e Raffaella Cerullo (Lila). É Elena, já no decorrer dos seus 60 anos, que se sente instigada pelo desaparecimento de Lila a escrever a história das suas vidas. A sua amizade começa aos 6 anos e com alguns rompimentos momentâneos mantem-se até ao dia em que, passadas seis décadas, Lila desaparece sem deixar rasto. Pelo meio há muitas vidas que se ligam, entreligam e se afastam numa complexa teia de sentimentos e emoções que vão da alegria ao desespero e da amizade ao ódio como só as relações humanas o conseguem na sua magnificência. No fundo resume-se a isto – relações humanas descritas tão ao pormenor que chegam a provocar choque através da sua crueldade despida de artifícios. Uma verdade que extravasa das linhas no papel e que assume as mais variadas imperfeições humanas. Uma noção real da mesquinhez humana, da maldade, do amor e do conflito que é lidarmos uns com os outros ao longo da vida. A Amiga Genial conquistou-me por isto, “pelas sensações e vontades que não se encontram habitualmente na literatura”.

 

Excerto – A História da Menina Perdida

 

“Malgrado tudo, o amor revolvia-se dentro de mim com fúria, e só o facto de planear fazer mal a Nino já me repugnava. Por muito que hoje em dia escrevesse e fizesse palestras a torto e a direito sobre a autonomia feminina, não era capaz de passar sem o seu corpo, a sua voz, a sua inteligência. Foi terrível reconhecê-lo, mas continuava a querê-lo, amava-o mais do que às minhas próprias filhas. Perante a ideia de o prejudicar e de nunca mais o ver desfolhava-me dolorosamente, a mulher livre e culta perdia as pétalas, separava-se da mulher-mãe, e a mulher-mãe mantinha as distâncias da mulher-amante, e a mulher-amante da galdéria enfurecida, e todas elas pareciam que iam começar a esvoaçar em diferentes direções. Quanto mais me aproximava de Milão, mais me apercebia de que, depois de pôr Lila de parte, não era capaz de ser compacta a não ser tomando Nino como modelo. Era incapaz de ser eu o modelo de mim mesma. Sem ele, não tinha um núcleo a partir do qual me expandisse fora do bairro e pelo mundo, era um montão de lixo. Aportei, extenuada e aterrorizada, à casa de Mariarosa.”

 

Rock&Rolla 2017