“Três”, de Valérie Perrin

Três de Valérie Perrin

Valérie Perrin ficou internacionalmente conhecida como autora de “A Breve Vida das Flores” (2022), um êxito de vendas e um romance verdadeiramente bem escrito em que facilmente nos vemos embrenhados. Cada elogio que lhe foi feito é partilhado por mim e, exatamente por isso, não resisti a ler logo de seguida o “Três” (2023) . Tudo isto para confirmar que os romances também povoam esta página e muitas vezes, como agora, são eles que mais inteligivelmente nos dizem o que é a vida e nos mostram as suas mais variadas nuances. Um excerto que me arrepiou quando o li, e que merece ser partilhado como mote para o problema da violência invisível aos olhos dos que não são a sua vítima direta.

Excerto:

“ – Estiveste a beber? – pergunta-lhe Emmanuel.

Aquela pergunta só lhe dá mais vontade de rir. Tenta articular: «Por uma vez, não», mas não consegue. Está dobrada em dois na cadeira. Desde quando não se ria assim? Lembra-se das palavras de Étienne: «A tua vida é puro Zola.» É impossível esquecer aquela frase, aquela construção implacável.

Ela vê-se na sua cozinha caríssima, junto do marido com que todas sonham, a rapar puré porque detesta carne e a cozinheira faz questão de lha servir, e a acabar de saber que ele se candidatou a uma adoção sem a consultar.

«A tua vida é puro Zola.»

Aquilo que deveria fazer chorar as pedras da calçada surte nela o efeito oposto. O seu riso nervoso reverbera nas belas tapeçarias da casa que ela habita sem lá viver.

Nathalie aproxima-se deles, com um ar de dúvida, e naquele momento, ao vê-la, Nina como que recebe um eletrochoque.

O que está ela a fazer ainda aqui?

Nina sente dificuldade em respirar. Está na iminência de ter um ataque de asma. Endireita-se na cadeira e já não ri. Desata a gritar à cozinheira:

– Desapareça da minha casa! Não quero vê-la mais! Xô! Desapareça!

Confusa, a outra olha para Emanuele, para perceber o que deve fazer.

– Pare de olhar assim para o meu marido! Sou eu que estou a falar consigo, vá-se embora imediatamente!

Nathalie pega no sobretudo que está no vestíbulo e bate com a porta sem se virar.

– O que é que te deu? – pergunta Emmanuele à mulher.

– O que me deu é que não quero ter filhos. Nunca quererei. Enganei-te na mercadoria. O que me deu é que me pergunto, sim, pergunto-me como é possível que tenhas iniciado um processo de adoção sem me consultar!

Ela começa a tremer. Acaba de libertar as palavras presas há demasiado tempo. Saem mal, como tudo o que se deixa sair sob o domínio da fúria. A reação de Emmanuel é tão inesperada como o riso descontrolado dela: sorri-lhe com desprezo. Seguro de si, olha-a de cima como se ela não valesse nada ou fosse um objeto que tivesse começado a falar, uma incongruência. Então, ela lança-se a ele para lhe bater. Primeiro nos ombros, depois nos braços, nas costas, na barriga, ela bate, cega de raiva, bate ainda mais, dá-lhe pontapés. Ele sorri cada vez mais abertamente. Quando ela percebe o que está a fazer começa a gritar. Ele olha para ela, nunca deixando de sorrir. Um sorriso que dá medo, aterroriza mesmo.

– Minha pobre rapariga… Eu apanhei-te na rua. E, acredita, vamos ter esta criança. E tu vais tratar dela de dia e de noite. Agora vais fazer-me o obséquio de telefonar à Nathalie a pedir desculpa.

– Nunca.

– Pensa bem. Posso mandar-te internar agora mesmo. Os manicómios estão repletos de pessoas como tu: solitárias, depressivas, ociosas e alcoólicas. Tenho um braço comprido. Um telefonema ao nosso respeitado médico de família e acabarás a tua vida num colete de forças. Deixarás até de saber como te chamas. Nunca te esqueças, nunca, de que és minha mulher… Os processos, sou eu quem os assina – processo de adoção, processo de divórcio, processo de internamento. E não contes com os teus supostos amigos para te virem buscar: o bófia e o larilas estão-se nas tintas para ti. Deixar-te-ão afundar na merda sem mexerem o mindinho. A única pessoa que te ama e com quem poderás sempre contar à face da terra sou eu. Mas isso és demasiado estúpida para perceberes.

Emmanuel sobe para o quarto, deixando Nina a limpar os restos do jantar.”

 

In, Três, de Valérie Perrin, 2023, Editorial Presença